O dia 16 de Dezembro de 1973 amanheceu cinzento e chuvoso. Nada de especial para a nossa urbe, ainda para mais em Dezembro. Não me lembro se estava frio, mas também ainda sobre nós não caíra a obsessão do “aquecimento global”. Aliás, se bem me lembro, os “entendidos” diziam na altura que a temperatura do planeta estava a baixar, deixando-nos antever uma era glacial em que jogaríamos em Lisboa no nosso ambiente, isto é, com frio. Mas o cariz meteorológico daquele dia condiz, tristemente, com o descrito num artigo que há anos li – creio que do Carlos Pinhão – sobre “O Dia em Que o Pinga Morreu”. Um artigo sentido, diga-se, e que muito faz distanciar o pai da filha. Mas esses são outros contos.
Naquele dia 16 de Dezembro o FC Porto recebia nas Antas o Vitória de Setúbal. A equipa portista vinha disputando o campeonato com mais pujança que nas anteriores três ou quatro épocas, no seu melhor desempenho desde a saída de José Maria Pedroto em 1969. O presidente, Dr. Américo Sá, “descobrira Béla Guttmann numa esquina de Viena”, para usar uma expressão anos mais tarde utilizada por Jorge Nuno Pinto da Costa.
Aos 73 anos “o Mago” regressara à casa que deixara em 1959 alegando que o clima portuense era maléfico para o seu reumatismo, rumando ao Benfica. Não esclareceu, neste seu regresso, se se tratara do reumatismo nas termas de Baden-Baden ou se o clima portuense se tornara, a seu ver, mais seco. Mas de facto voltara. E, como velha raposa que era, montara uma equipa segura a defender – com Rolando jogando atrás dos outros três defesas e em forma soberba, e com o guarda-redes Tibi na sua melhor condição de sempre.
No meio-campo um trio criativo, Pavão e os brasileiros Bené e Marco Aurélio, e na frente dois extremos e um ponta-de-lança: o genial Oliveira que, com 21 anos e de sangue na guelra, ia pintando a manta ao longo da linha no seu interminável reportório de dribles, fintas e chicuelinas, o veterano Nóbrega “com os seus eternos defeitos e qualidades”, no dizer do grande jornalista Vítor Santos, e o possante avançado-centro moçambicano Abel, contratado ao Benfica três anos antes. E contava ainda, no “banco”, com o internacional brasileiro Flávio, um magnífico ponta-de-lança cujos melhores tempos no nosso clube já haviam, contudo, passado.
Do outro lado estava o nosso velho conhecido José Maria Pedroto e aquela que era, provavelmente, à época, a melhor equipa do futebol português, entendendo-se aqui por equipa não apenas o somatório das qualidades individuais dos seus jogadores. De facto – e sem surpresa - o “Zé do Boné” fizera de uma boa equipa uma grande equipa, e nesta sua 5ª (!) época à frente do conjunto sadino disputava o título sem pedir licença a ninguém. No mês seguinte o Vitória venceria na Luz por 3-2 e isolar-se-ia no primeiro lugar, acabando Pedroto, pouco depois, por “bater com a porta” e demitir-se, em situação controversa.
Começou o FC Porto muito bem o jogo, sempre disputado debaixo de chuva, e aos sete minutos adiantou-se no marcador com um golo do frio Marco Aurélio. Mas poucos minutos depois, aos 13 minutos mais precisamente, chegaria a tragédia, se bem que só nos viéssemos a aperceber da sua verdadeira dimensão no final do jogo. No meio do terreno e à entrada do campo adversário Pavão passou à direita a Oliveira – uma simbólica passagem de testemunho – e caiu subitamente de bruços sem ninguém lhe ter tocado. Alguns jogadores próximos do lance levaram as mãos à cabeça, os bombeiros entraram em campo e transportaram o infeliz para fora dele e pouco depois pôde ver-se, através da “maratona” (ainda não existia a arquibancada) uma ambulância levando-o ao Hospital de São João. Mas o jogo prosseguiu e o locutor de serviço até nos informou daí a pouco que “o nosso jogador Pavão foi transportado ao Hospital e encontra-se melhor”.
Mais tarde o médico do clube, Dr. José Santana diria: «Reparei que caíra de bruços. Era homem que não fazia fitas. Portanto, tive logo a percepção de que era grave. Entrei no relvado e reparei que estava em estado de coma. Levei-o de imediato ao Hospital de São João. Tentou-se tudo. Fizeram-lhe electrochoques, mas era uma hemorragia cerebral. Hora e meia depois, tinha falecido. Poderia ter sido ruptura de um vaso sanguíneo, talvez em virtude de uma cabeçada na bola.»
Abel faria o 2-0 ainda na primeira parte e o FC Porto controlou bem o jogo no segundo tempo, pese embora uma excelente e determinada reacção dos vitorianos. Foi dos melhores jogos do FC Porto contra o V. Setúbal de Pedroto, que tantos amargos de boca nos causou…
E o jogo terminou. Subitamente um tenebroso silêncio abateu-se sobre o Estádio das Antas. Ninguém arredava pé. Da instalação sonora, nem pio. Mas já toda a gente percebera o que tinha acontecido. No relvado os jogadores choravam abraçados uns aos outros. José Maria Pedroto abraçava o seu antigo mestre Béla Guttmann, para depois ele próprio e alguns jogadores do Vitória de Setúbal, entre os quais o nosso futuro jogador e treinador Octávio, tentarem consolar os jogadores do FC Porto.
O próprio Pedroto seria vítima da comoção do momento, abandonando o campo amparado por alguns dos seus pupilos. Afinal fora ele que moldara aquele grande jogador que ali morrera com apenas 26 anos e que à época era, nada mais, nada menos, que o próprio símbolo do clube e seu capitão de equipa.
Encostei o ouvido ao transístor do vizinho e pude ouvir a voz do inesquecível Nuno Braz: “Morreu na flor da idade aquele que era um dos maiores jogadores portugueses”. Toda a gente estava petrificada, horrorizada com o sucedido. Atrás de mim uma senhora começou a rezar um Pai Nosso em voz alta, e largas dezenas de espectadores a acompanharam, no meio de lágrimas e soluços. O Pavão era o nosso maior ídolo da altura. O Porto não era campeão há 15 anos e sentíamo-nos perseguidos pelo infortúnio. Aquela morte chocante mais contribuiu para esse sentimento colectivo de fatalismo. Foi um dia negro. O mais triste dia futebolístico da minha vida.
Fernando Pascoal Neves, tenho a certeza que, de onde estás, te alegras com os nossos êxitos e nos desejas muitos mais! Paz à tua alma, grande “Pavão”!
9 comentários:
Não me lembro de ver jogar o Pavão e também não me lembro deste fatídico jogo.
Contudo, ao ler este artigo do Alexandre, imagino a emoção dos adeptos, na vitória mais triste de sempre.
Com a devida vénia, transcrevo parte do texto que Francisco José Viegas escreveu sobre a morte de Pavão.
"Cerca de vinte anos depois, quando escrevi um livro intitulado “Morte no Estádio”, recordei a imagem de Pavão caindo no estádio como um herói em sacrifício. Diante da sua tribo, “recordei o silêncio do estádio, a apreensão, a incredulidade e a absoluta perda. Recordaria mais, ainda : o jeito de correr, o modo como abria os braços sem desviar os olhos de todo o campo, de todo o recinto onde se jogava a vida e a morte de cada partida. Recordaria o modo como os seus passes percorriam essa distância como se a bola obedecesse ao seu olhar, como se a bola – por magia, essa magia só acessível aos heróis do futebol – obedecesse ao seu mando. Pavão era alcunha : porque era imponente quando queria, porque ao correr, com os braços ligeiramente abertos, toda a sua vaidade se destinava a fazer com que a bola sucumbisse aos seus desejos e ao seu capricho incessante : que fosse nossa a bola de cada golo marcado.
O nosso Estádio, qualquer que ele seja, recordará sempre essa figura da minha adolescência e da nossa paixão portista. Ele era e será um dos nossos heróis”.
Pavão foi muito poucas vezes internacional. Era um rebelde, dizia a imprensa do costume. Talvez fosse. Recordo, porém, que na sua primeira internacionalização (julgo eu), Portugal jogou com o Brasil, em Moçambique. Obviamente não tivemos o jogo em directo pela TV. Mas, tivemos em directo pela Rádio. Os comentadores fartaram-se de cantar loas relativamente à excelente exibição que Pavão estava a fazer. Sabem qual foi o primeiro jogador a ser substituído para espanto de todos ? Foi o Pavão. Era assim, nesses tempos : quem não fosse do SLB ou do SCP era sempre o eleito a ser sacrificado. Pavão foi sempre um dos nossos e assumia, na qualidade de capitão, esse espírito de inconformismo, nomeadamente na relação que mantinha com os árbitros. Muito mudou, desde então, mas há quem insista nos tiques do antanho : o caso “Vítor Baia” é apenas um exemplo.
Ao ler este post recordo esse terrível momento que presenciei.
Pavão era um enorme jogador. Só não era mais reconhecido devido a ser do Porto e não de qualquer clube da 2ª circular.Ia à selecção de vez em quando, nem sempre titular, era ele e o Rolando.
Foi também para mim o pior momento de adepto e espectador.
O Pavão foi, se bem me lembro, 12 vezes internacional, a última das quais, creio, em Coventry contra a Irlanda do Norte em 1972 ou 1973 (devido aos distúrbios no Ulster a selecção norte-irlandesa estava a jogar as suas partidas caseiras em Inglaterra). Para um jogador de 26 anos, e atendendo ao facto de, à época, haver muito menos jogos internacionais que agora, não sendo um registo extraordinário, também não é modesto. Mas sem dúvida que, se vestisse de vermelho ou verde-às-riscas, teria envergado mais vezes a "camisola das quinas".
O Pavão era de facto, "um rebelde". Até o Pedroto teve de o multar, enquanto seu treinador no FC Porto.
Mas como bem diz o Mário Faria, o Pavão era "um dos nossos" - e isso diz muitíssimo, e marca a diferença em relação a alguns que se afirmam à nossa custa e que depois nos tratam indignamente. Não preciso de citar nomes.
Podem crer que escrever este artigo me causou mais desgosto que prazer. Sempre me foi difícil recordar aquele dia.
Obrigado ao Alexandre, ao Mário e já agora ao Jorge por mais esta lição da História do FC Porto, muito proveitosa para mim, que ainda não era nascido. Sobretudo o cunho pessoal, a forma como viveram, no estádio, esse trágico dia.
Pavão não foi o único jogador a não ter sido reconhecido o devido valor para representar mais vezes a selecção nacional. Mas também ele, apesar da sua curta vida, terá certamente entendido que o facto de ser do FC Porto lhe limitou o progresso ao serviço da pátria.
Uma dúvida: Pavão está sepultado no Mausoléu do clube?
Obrigado pela tua simpatia, Nuno. Como já disse foi um dia chocante.
Mas indo à tua pergunta: sim, o grande Pavão, tal como os igualmente grandes Pinga e Pedroto, está sepultado no nosso mausoléu em Agramonte.
Belo artigo, Alexandre.
A morte de um desportista (no caso do Pavão, de um ídolo) em pleno estádio é uma tragédia.
Recentemente, talvez devido a maior circulação de informação, sabemos que morrem demasiados (isto para não falar nos miúdos que morreram com a absurda queda das balizas).
O desporto devia ser um espectáculo para o público e um motivo de satisfação para os praticantes (mesmo para os adeptos e praticantes da equipa que não ganha).
A competição, a rivalidade, devia ser saudável.
Creio que o - demasiado - dinheiro envolvido estragou o desporto.
Um abraço
Luís
Obrigado pelas suas belas palavras de desportista, Luís, sabendo eu que você não enverga o "azul-branco".
Tinha acabado de fazer 12 anos, no dia 11 de dezembro, os meus tios deram-me como prenda ir ver um jogo do FCP. Foi logo contra o Setúbal de Mestre Pedroto, que a nossa família adora muito. Estava nos cativos. Lembro-me como se fosse hoje. Grandioso jogador, magnifico. Se fosse hoje com certeza que seria um dos melhores do Mundo. Em minha casa falavam muito de Pavão como um fora de série, foi uma tristeza para mim pois só o vi jogar 13 minutos.
Enviar um comentário