terça-feira, 19 de agosto de 2008

Ciclismo para onde corres?

Equipa do FCP de 1951

Vi a última subida à Torre e chocou-me a falta de entusiasmo e de adesão popular. Haverá muito provavelmente muitas razões para o explicar, sendo que nem a ausência dos grandes clubes justifica tudo, uma vez que o SLB anda por lá e tem muitos milhões para ajudar a puxar a carroça.

Era uma loucura, no passado. O Lima e as Antas enchiam para ver os heróis da estrada. A rivalidade no futebol, em época de defeso, transferia-se com armas e bagagens para o ciclismo. E nem sempre foi travada exclusivamente a esse nível.

A rivalidade de Alves Barbosa com Ribeiro da Silva e os grandes duelos travados entre ambos nos anos 50, davam apara animar as várias falanges que se reviam nos clubes mais emblemáticos que se dividiam no apoio a um dos dois, quando aos ciclistas dos seus clubes apenas estava destinado um papel de artistas secundários.

Alves Barbosa, da equipa do Sangalhos, foi o primeiro a correr na volta a França e chegou a ficar em décimo lugar. Era mais querido a sul; Ribeiro da Silva (do Académico do Porto) fez uma volta à Espanha e ficou nos cinco primeiros (creio que foi terceiro). Era mais apoiado a Norte, o que não invalidou que tivesse assinado pelo SLB, que nunca representou, pois morreu num trágico acidente de moto.

Os primeiros anos do ciclismo foram dominados por Alfredo Trindade e José Maria Nicolau, que representavam o SCP e o SLB, e só em 1948 vencemos a primeira volta a Portugal. Fernando Moreira foi o autor da proeza. Era muito popular: até a minha avó gostava imenso dele. Para além das qualidades desportivas, era elegante e muito bom tecnicamente. Durou pouco tempo como corredor, por motivos que não consigo recordar. Talvez pela passagem ter sido breve, passou a ser uma lenda. A admiração que tenho por Fernando Moreira, faz parte desse legado que os mais velhos da família me transmitiram. Não me lembro sequer de o ter visto correr.

A partir dessa altura, passamos a ter uma forte presença na volta e ganhamos individualmente a Volta, nos seguintes anos:
Fernando Moreira: 1948 ; Dias dos Santos: 1949 e 1950 ; Moreira de Sá: 1952 ; Carlos Carvalho: 1959 ; Sousa Cardoso: 1960 ; Mário Silva: 1961 ; José Pacheco: 1962 ; Joaquim Leão: 1964 ; Joaquim Sousa Santos: 1979 ; Manuel Zeferino: 1981 ; Marco Chagas: 1982

Destes nomes e destas vitórias - todas elas me deram uma grande alegria e prazer - permito-me destacar as que me deixaram esfuziante:

1) Sousa Cardoso em 1960: Sousa Cardoso era um corredor muito possante, não muito bom tecnicamente (caía com grande frequência), bom trepador e contra-relogista. Não era um bom finalizador e as etapas que ganhava fazia-o, invariavelmente, quando conseguia isolar-se.
Numa volta à Espanha ganhou uma etapa depois de ter andado solitariamente fugido, bem mais de 100 Kms. Uma força da natureza.
Acabou com o primado de Alves Barbosa, que nessa volta ganhou muitas etapas e muitos segundos de bonificação. Finalmente, Sousa Cardoso acabou com o mito, sempre muito mimado pela boa Imprensa que tinha. Nós não íamos muito com ele.

2) Mário Silva em 1961: Mário Silva era muito jovem quando ganhou esta volta. Deu um show autêntico e deslumbrou colegas e adversários. Era bom tecnicamente, um óptimo trepador e um bom contra-relogista. Era muito franzino: parecia um menino. Numa volta em que a equipa quase se eclipsou, foi um gigante. Bateu-se em todos os terrenos e brilhou na montanha. É um dos meus ciclistas preferidos e talvez com outro acompanhamento pudesse ter somado mais êxitos individuais. Mas, nessa altura o FCP tinha uma equipa muito homogénea e uma série de potenciais candidatos à vitória. Mário Silva teve sempre uma postura exemplar na ajuda dos companheiros, nomeadamente na vitória de José Pacheco.

3) José Pacheco em 1962: José Pacheco era um péssimo trepador, bom rolador e razoável contra-relogista. Nada indicava que pudesse ganhar uma volta a Portugal. Mas, ganhou e de que maneira. Ganhou a camisola amarela numa etapa que acabou nas Antas. A chegada ocorreu à hora do almoço. Vinha seguindo as peripécias de etapa pela rádio. Sabia o que se passava e das várias tentativas de José Pacheco descolar de Peixoto Alves do SLB (treinado na altura por Alves Barbosa), grande candidato à vitória final e com quem José Pacheco vinha mantendo um duelo muito particular. À terceira tentativa conseguiu fugir-lhe. Fui logo a correr para as Antas para assistir ao fecho da etapa. Foi ganhando tempo e Peixoto Alves nunca mais o apanhou. Nessa noite na TV, no Diário da Volta, os técnicos de imagem apanharam muito bem os vários momentos e as várias tentativas de fuga de José Pacheco. A última e decisiva tentativa, o homem saiu que nem uma flecha, bem colado à berma da estrada, e num sprint vigoroso e longo distanciou-se de forma irreversível. A sua vitória final foi marcada nessa etapa. Semeou vantagem suficiente para ganhar a camisola amarela e ficar com uma diferença interessante para se defender na montanha, do seu mais directo rival.

José Pacheco (FC Porto), Peixoto Alves (Benfica) à esquerda, Jorge Corvo (Tavira) à direita, Sousa Cardoso (FC Porto) e João Roque (Sporting)

José Pacheco contou sempre com o trabalho exemplar dos colegas. Com a ajuda da equipa (que o levou ao colo pela serra acima) não soçobrou e veio muito justamente a ganhar uma volta em que ganhou, salvo erro, 7 etapas. Nesse ano, depois desta vitória, resolveu assinar pelo SCP. Teve um fim desportivo cinzento, que este sucesso e tanta glória, justamente conquistados, não mereciam. O homem, talvez?

4) Joaquim Sousa Santos em 1979: Joaquim Sousa Santos filho de Sousa Santos uma velha glória do ciclismo do FCP e acima citado, acabou com um jejum de 15 anos. Foi uma volta saborosa e sofrida que determinou o regresso do nosso clube ao primeiro plano do ciclismo nacional. Foi uma vitória da regularidade e determinação. A equipa ajudou e esteve a altura do vencedor.

Joaquim Sousa Santos pai (à esquerda) e filho (à direita)

5) Manuel Zeferino em 1981: Manuel Zeferino era muito jovem quando ganhou esta volta. A vedeta era o Marco Chagas: o favorito número um à vitória final. Só que na primeira etapa em linha, Manuel Zeferino fugiu e ganhou à volta de 13 minutos sobre o pelotão. O resto foi um passeio, que o FCP dominou individual e colectivamente.

A volta e o ciclismo tinham muito público. As provas em pista eram, igualmente, seguidas com enorme interesse. Os estádios enchiam. Assisti a festivais de ciclismo com grandes nomes internacionais, dos quais destaco Eddy Merckx, provavelmente o melhor ciclista de todos os tempos. Foi uma noite que não esquecerei, pois era um dos meus ídolos de rapaz.

Embora este artigo seja para falar do ciclismo do FCP não me parece descabido incluir uma justa referência ao melhor ciclista de todos os tempos portugueses: Joaquim Agostinho. Faço-o lembrando uma etapa realizada no Estádio das Antas de “perseguição” individual. A camisola amarela era detida por um ciclista do FCP (Carlos Carvalho, Azevedo Maia, não me lembro bem) a poucos segundos de Joaquim Agostinho. O Estádio esgotou. Havia uma enorme expectativa e a esperança que o nosso ciclista se aguentasse e a até pudesse ganhar algum tempo. Não foi assim. Joaquim Agostinho deu um autêntico festival e um "banho" ao nosso atleta. Ganhou a amarela. Acho que no fim, ninguém ficou incomodado e Joaquim Agostinho saiu debaixo de uma grande ovação.

Falta, obviamente, falar em tantos que tanto deram e tanto colaboraram para as vitórias. Chamavam-lhes “aguadeiros”. Como não é possível falar em todos, destaco Onofre Tavares que foi um dos melhores sprinters portugueses. Com 16 anos ingressou no FCP e no clube se manteve durante 15 anos. E Emídio Pinto, mediano ciclista, que se tornou um dos mais sagazes treinadores da modalidade.

Tenho pena da penúria do nosso ciclismo. Não decoro nomes, não se vê quem seja capaz de ganhar alguma notoriedade, nem clubes para se firmarem no panorama do ciclismo português. Só o esforço conjunto dos patrocinadores, dos clubes mais emblemáticos, das autarquias e da TV poderá vir animar uma modalidade (ela também em crise com os escândalos do doping) com um historial riquíssimo, mas com um futuro cheio de incertezas.

Fotos: 'Paixão pelo Porto' e 'Manuel da Costa online'

10 comentários:

  1. Não sou do tempo do entusiasmo e disputa entre os três grandes no ciclismo, particularmente das décadas de 40, 50 e 60, que penso terem sido as décadas onde esta disputa foi mais intensa.

    Lembro-me, contudo, de ouvir dizer que o Ciclismo foi fundamental para levar as camisolas dos três grandes a todo o país, numa altura em que não havia televisão ou esta estava a dar os primeiros passos.

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  2. «Manuel Zeferino era muito jovem quando ganhou esta volta. A vedeta era o Marco Chagas: o favorito número um à vitória final. Só que na primeira etapa em linha, Manuel Zeferino fugiu e ganhou à volta de 13 minutos sobre o pelotão.»

    Lembro-me perfeitamente desta Volta e, particularmente, desta etapa em que em pleno Alentejo deixaram o, na altura, desconhecido Manuel Zeferino fazer quase 200 Kms sozinho e ganhar a etapa com um avanço impensável.

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  3. Não sei se é só o doping que está a matar também o meu interesse pelo ciclismo, mas não deixa de ser curioso que foi por causa do doping do Marco Chagas que se iniciou o meu interesse pelo ciclismo com a vitória do Joaquim Sousa Santos em 79.

    Começou pelo doping e está a acabar pelo doping.

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  4. Estava agora a recordar que os tempos são mesmo outros, ainda me lembro de ir ver corridas de juniores - era na altura a vedeta o Manuel Cunha com os seus óculos fundo de garrafa. Hoje nem a volta a Portugal me cativa.

    E por aqui faltam também as provas do JN, nomeadamente o grande prémio JN a acabar religiosamente no dia de S. João nos Aliados.

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  5. Obrigado Mário Faria por estas recordações dos meus tempos de infância e juventude...
    Lembro-me de ir ao "Lima" ver a chegada da Volta nos tempos das lutas Alves Barbosa/Ribeiro da Silva. E tenho ideia que, nesse tempo, os portistas torciam pelo Ribeiro da Silva, que era do Académico do Porto e os miudos meus amigos benfiquistas, torciam pelo Alves Barbosa do Sangalhos, vá-se lá saber porquê!... Alguém me explica?
    Depois da morte do Ribeiro da Silva entrou em cena o FCP e passou a dominar! Que alegrias. Ia-se para a porta do JN na Av. dos Aliados ler os placards escritos à mão, em papel, com as notícias sobre a volta, sempre actualizadas.
    Era a grande fonte de informação antes de aparecerem os "transistores" japoneses...
    E a Avenida doa Aliados enchia-se completamente para receber a equipa do FCP quando regressava vitoriosa da Volta...

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  6. «Ia-se para a porta do JN na Av. dos Aliados ler os placards escritos à mão, em papel, com as notícias sobre a volta, sempre actualizadas.
    Era a grande fonte de informação antes de aparecerem os "transistores" japoneses...
    E a Avenida doa Aliados enchia-se completamente para receber a equipa do FCP quando regressava vitoriosa da Volta...»

    Por acaso, o caro amigo Hulk onze milhas não terá uma foto ou recorte desses tempos, da Avenida dos Aliados cheia, que nos queira enviar?

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  7. Meu caro José Correia:
    Eu guardava os jornais sempre que traziam alguma coisa que considerava "especial" como era o caso. Um dias destes vou colocar uma máscara "anti-poeiras" e se encontrar algo interessante, sobre este tema ou outros, terei imenso gosto em enviar para V/apreciação.
    Voltando ao tema, penso que a primeira grande machadada no ciclismo foi dada pela equipa da "Mako-Jeans" quando resolveu contratar a equipa completa do FCP, que vinha dominando o ciclismo! O nosso Presidente reagiu e pediu à Federação de Ciclismo para alterar os regulamentos de forma a que mais nenhuma equipa ficasse vulnerável a um ataque desta natureza.
    Mas claro que a FPC não alterou coisa nenhuma pois os nossos eternos rivais ficaram todos felizes já que o FCP ficou sem as suas vedetas e praticamente impossibilitado de constituir uma equipa minimamente competitiva.
    Então o nosso Presidente da altura, que também se chamava Pinto da Costa mas que era muito diferente deste que lá está agora, :-), resolveu retirar o FCP do ciclismo até que os regulamentos fossem alterados...
    Poucos anos depois Benfica e Sporting também acabaram por abandonar a modalidade. A partir daí.... foi sempre a descer... até à desgraça actual!
    É esta a minha memória sobre o descalabro em que acabou por cair o ciclismo e mais propriamente a Volta a Portugal.
    Claro que outras razões mais recentes vieram agravar a situação.

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  8. «Um dias destes vou colocar uma máscara "anti-poeiras" e se encontrar algo interessante, sobre este tema ou outros, terei imenso gosto em enviar para V/apreciação.»

    Caro Hulk, desde que o pó acumulado não lhe faça mal, ficaremos muito gratos.

    Se posteriormente nos quiser contactar, sobre este ou outros assuntos, sugiro a utilização do e-mail do blog
    reflexao.portista@gmail.com

    Um abraço

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  9. E a barbaridade do principal organizador da volta a Portugal em bicicleta deste ano ser o principal patrocinador da equipa das gaivotas?
    Se fosse o Porto eu queria ver como era o escândalo.
    Outra coisa que me irrita profundamente é ver grandes portistas a correr pela equipa das gaivotas.

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  10. rage disse: «Outra coisa que me irrita profundamente é ver grandes portistas a correr pela equipa das gaivotas»

    Caro rage, presumo que se está a referir ao José Azevedo e ao Cândido Barbosa.
    Também gostava de os ver de azul-e-branco, mas não se esqueça que eles são profissionais.

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