Hernâni estava lançado em voo de glória. Goleador de auréola cada vez mais refulgente. Nascera em Águeda e mal começara a dar os primeiros passos seu pai levava-o garboso a assistir aos seus treinos de basquetebolista no Recreio. E entranhara-lhe já paixão pelo Benfica, de tal forma o catraio não parava de dizer, ufano, que era «benfiquista até à medula». Mas para o basquetebol não mostrava muita inclinação. Para o futebol, sim – e só pensava imitar os seus ídolos, o Albino, o Francisco Ferreira, o Pinga (cujo único defeito era, cria, não ser do... Benfica).
A sua fama de futebolista no Futebol Clube de Águeda (outro desgosto ter de jogar de azul e branco...) depressa alastrou e um dia Soares dos Reis chegou a Águeda para o levar para o F. C. Porto. Dona Aurora ouviu a «trágica» notícia e impediu o filho de sair de casa durante dois dias. Tinha 16 anos. Pouco depois, dois emissários do Benfica procuraram seu pai, tudo ficou mais ou menos combinado, o senhor Manuel Ferreira Barreira até ficou com o dinheiro para as passagens de comboio, em primeira classe, de Águeda para Lisboa. Ao sabê-lo, a mãe entrou em depressão, Hernâni, vendo-a assim, desistiu da aventura...
Até que em 1949, mal acabara de fazer 18 anos, Alberto Augusto, o célebre «Batatinha», que jogara no Benfica e, de parceria com Ribeiro dos Reis e Cândido de Oliveira e de seu irmão Artur Augusto (o primeiro «internacional» do F. C. Porto), fizera parte da primeira Selecção que defrontou a Espanha, era, nesse comenos, treinador portista. Foi a Águeda ele próprio falar com D. Aurora, pedindo-lhe que não permitisse que o seu desvelo de mãe destruísse o destino do filho fadado para altos voos. A senhora impressionou-se e com poalha de orgulho acedeu – que sim, que fosse jogar a bola para o F. C. Porto, mas com uma condição: continuar a viver em casa, em Águeda.
Com uma emoção confusa, feita de medo e de ilusão de fastígio, Hernâni estreou-se, pelo F. C. Porto, contra o Estoril, substituindo Araújo. Como se houvesse nisso, simbolicamente, passagem de testemunho. Marcou um golo e ficou lançado. Com pátulo para a glória. E prazer no sofrimento de ter de fazer, duas vezes por semana, 150 quilómetros para se ir treinar à Constituição.
Numa manhã de 1952, o carteiro deixou na sua casinha do Bairro da Venda Nova uma carta que sobressaltou toda a família – estava convocado para o Regimento de Cavalaria 7, em Lisboa. Teve de partir. E foi jogar para o Estoril. No final da época transferiram-no para Santa Margarida e... regressou, naturalmente, ao F. C. Porto. Apenas se poderia treinar uma vez por semana na Constituição, estando obrigado a entrar no quartel logo após os jogos para que fosse dispensado, mesmo que madrugada dentro. Era um pequenino privilégio, que agradecia muito...
Em 1953, o Sporting chamou-o a integrar a sua equipa, em digressão ao Brasil. Convidado foi, também, Mário Wilson. Ficou quente a amizade. Mas, por vezes, no calor da luta há sentimentos que se apagam. Foi o que aconteceu naquela tarde em que os deuses pareciam querer evitar que Hernâni ganhasse o seu primeiro título de Campeão Nacional da I Divisão, durante o dramático jogo com a Académica...
«Ramin defendia tudo, quando o árbitro assinalou a grande penalidade a nosso favor, os meus companheiros já perturbados pelo teimoso nulo viraram as costas, não quiseram, sequer, ver-me apontar a falta. Mas esse foi o penalty mais fácil de marcar da minha vida. Estávamos havia mais de uma hora sem marcar, a Académica não podia perder, era uma dificuldade tremenda para nós, Mário Wilson e Torres mandavam na defesa, Ramin defendia tudo. Quando o penalty surgiu apoderou-se imediatamente de mim a ideia de que tinha chegado a hora de fazer o que não conseguíramos durante uma hora, quando já muita gente descria. Tive concentração, bati a bola, foi uma enorme explosão no estádio, uma alegria extraordinária. Sempre tive o melhor relacionamento com Mário Wilson, amizade que tinha ficado consolidada nessa famosa digressão que o Sporting fez ao Brasil. Quando o árbitro assinalou a grande penalidade, gerou-se a habitual confusão, eu fugi do barulho, com o intuito de não me enervar e não perder a concentração. O Mário Wilson, com aquela habitual calma, veio junto de mim e, em tom de chalaça, tratando-me por... Ferreira da Silva, disse-me que iria deitar a bola para fora! Repetiu a frase e quando se preparava para a lançar pela terceira vez, respondi-lhe com meia dúzia de asneiras, agastado com ele. Retirou-se. No final do jogo, naquele momento emocionante da festa indescritível do título, abeirou-se de mim, abraçou-me e ainda comovido disse-me que não sabia que era tão malcriado.»
Glória e Vida de Três Gigantes
in A BOLA
Quando eu era miúdo, o meu pai contou-me a história deste FC Porto - Académica, da época 1955/56.
Quatro anos antes, em 1952, os portistas tinham concretizado um sonho, com a inauguração do Estádio das Antas, mas desportivamente o FC Porto já não era campeão há 16 anos.
Em 1955/56 o treinador era Yustrich (o homão), um disciplinador que impôs maior profissionalismo e, dispondo de jogadores como Miguel Arcanjo, Virgílio, Monteiro da Costa, Pedroto, Hernâni, Perdigão e Jaburu, entre outros, conseguiu formar uma equipa fantástica e encher de esperança os adeptos portistas.
Contudo, naquela tarde, o destino parecia mais uma vez estar contra nós. Na baliza da Académica estava um guarda-redes, de seu nome Ramin, que defendia tudo. Os minutos passavam, o FC Porto não conseguia marcar e o Estádio das Antas, cheio como um ovo, parecia uma chaminé, com milhares de adeptos, de nervos em franja, a fumar cigarros atrás de cigarros.
Até que ocorreu o tal lance do penalty, convertido por Hernâni, transformando o Estádio das Antas num vulcão e abrindo caminho a uma vitória por 3-0 e ao titulo de campeão nacional, que nos fugia desde 1939/40.
Hernâni Ferreira da Silva e Orlando de Carvalho Ramin, nunca os vi jogar, mas de tantas vezes obrigar o meu pai a contar-me as ocorrências deste jogo, é como se tivesse estado lá.
Nota final: Ao recordar este jogo queria, em primeiro lugar, lembrar o meu pai, mas também toda uma geração de adeptos portistas que, ano após ano, sofriam com as "calabotices" do sistema e, é justo reconhecê-lo, também com alguma incompetência própria.
P.S. As fotos inseridas no texto de A BOLA são da minha responsabilidade.
5 comentários:
É justo que recordemos as antigas glórias e essa massa associativa que teve de suportar dois grandes períodos de jejum de títulos. Eles também fazem parte da nossa história.
Obrigado Mário por estas memórias.
O FC Porto - Académica mais distante que consigo recordar, até por ter assistido ao vivo, foi um jogo que vencemos nas Antas por 1-0 numa noite de intenso nevoeiro, algures no final da década de oitenta (acho que foi em 1987). Os estudantes resistiram com o empate de forma assinalável e foi outra grande figura da história do FC Porto, Madjer, que já perto do fim do jogo desfez o empate e deu a vitória ao FC Porto na marcação de um livre directo.
Engraçado ser também esta das histórias que mais recordo das conversas familiares sobre o FCP com o meu Pai.Eu nasci precisamente em ... 56 ... bom augúrio, ano de campeonato.
E lembro bem a história do Hernâni marcar o tal penalti, também tantas vezes repetida.
Obrigado pela recordação.
lembro-me tambem de um Porto-Académica em que - penso nos anos 60 ( finais )ou início dos 70 - o Nóbrega falhou um penalti, não ganhamos o jogo e lá se perdeu mais um campeonato. Não vi o jogo pois os piores castigos que me podiam dar por mau rendimento escolar eram... jogos de suspensão nas Antas. E lá fiquei em casa, a ouvir o relato e fazer exercícios de Matemática...
Vi o jogo. Uma tarde inesquecível em que Ramin ia defendendo tudo. E recordo a grande penalidade de Hernâni . Atirava sempre da mesma maneira : sesgado, forte e ao ângulo, do lado direito da baliza. Marcou dezenas e dezenas de grandes penalidades e que me lembre falhou apenas por duas vezes. Numa delas, foi o terreno que o atraiçoou, prendendo-lhe a bota, e saindo gravemente aleijado.
Recordo Hernâni, era muito miúdo : fui com o meu pai a uma sessão de captação de novos valores, e andava por lá um tipo muito magro, “corcovado”, e recordo-me do meu pai me dizer que, daquela rapaziada toda, o que tinha mais era jeito era o menos (bem) dotado física e atleticamente, na minha perspectiva. Acabou por ficar. O resto da história é conhecida.
Peço a desculpa ao Zé que foi o autor desta memória e não o Mário. É o hábito ;-)
As minhas memórias dos FCP, são todas dos anos 80 para cá, mas é sempre um prazer lêr histórias antigas de outros heróis.
saudações
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