Em 2009 todos descobrimos a lua. Não viajamos até lá. Ela veio até nós sob a forma do Barcelona treinado por Guardiola. Era uma equipa que enchia qualquer medida futebolística possível. Uma equipa agressiva mas elegante. Uma equipa com uma qualidade individual impressionante mas que funcionava como colectivo. Uma equipa onde os baixinhos (Xavi, Iniesta, Messi) jogavam com os raçudos (Etoo, Pedro, Touré, Puyol), com os inteligentes (Pique, Busquets, Henry) sem que qualquer um de nós fosse capaz de os excluir das outras características principais. Provavelmente tivemos a sorte de ver uma das grandes equipas da história do futebol moderno. Mais, tivemos a sorte de que o nosso FC Porto fosse comparado, lá fora, com essa máquina de futebol.
Historicamente o FCP sempre se associou ao FC Barcelona.
Clubes de segundas cidades, burguesas, mercantis, marítimas, rebeldes contra o poder do centralismo e, também é preciso dizê-lo, clubes que viveram as suas maiores secas desportivas de forma similar (durante os anos 60 e quase todos os 70) e que renasceram nos anos 80 para tornarem-se na maior força desportiva do seu país. O FCP com um presidente, o FC Barcelona com um ideólogo chamado Johan Cruyff. Ambos ganhamos provas europeias desde então (mais que o respectivo rival), ambos ganhamos ligas (mais que o respectivo rival) e ambos ganhamos a admiração do Mundo. Nós por sermos o eterno underdog sobrevivente na elite europeia, capaz de encontrar pérolas no meio do Amazonas e transformá-los em diamantes, e eles por serem os herdeiros dessa escola danubiana mítica. Para qualquer portista era um motivo de orgulho a comparação. A associação de futebol de posse, de qualidade técnica e táctica, de gestão desportiva com o Barça seguia os mesmos padrões que a comparação Real Madrid-Benfica dos anos 50 e 60, ambas equipas alimentadas pela máquina estatal, habituadas a ser o símbolo da propaganda de regime ditatoriais e com duas grandes gerações que coincidiram no tempo e espaço.
Nos anos AVB e VP a comparação permaneceu.
O Barcelona de 2013 já não é o mesmo de 2009. A própria evolução de Guardiola introduziu matizes importantes. Messi passou a ser o falso-nove, a equipa passou a jogar mais em função do génio argentino e a procura de alternativas estancou com o modelo original. Com o passar dos anos a agressividade e o pressing na hora da recuperação que tinham sido marca de identidade do primeiro Pep Team tornou o Barcelona uma equipa mais previsível, salva recorrentemente pelo génio superlativo de alguns dos melhores futebolistas da história. O FCP, que com AVB teve um ano similar ao do primeiro Pep Team, seguiu um trajecto similar. No nosso caso o problema foi a falta de opções condicionada pelo mercado e pelo desejo de jogadores importantes em sair. Sem Belluschi e Guarin o ritmo do meio-campo seria sempre diferente. Sem Hulk e Falcao a eficácia ofensiva baixaria sempre com o tempo. Com Varela a cair de forma, James a nunca explodir verdadeiramente e com Fucile, Rolando e Alvaro Pereira em quarentena (primeiro) e fora de contas (depois) o processo obrigou a uma reconstrução durante dois anos que interrompeu a ascensão da qualidade de jogo. Mas a matriz permaneceu, mesmo nesses momentos, a mesma.
O 4-3-3 era inegociável, a segurança defensiva o primeiro passo para o sucesso (como foi com Pep) e o controlo de jogo a obrigatoriedade máxima para quem subia em campo. É certo que o ritmo de jogo era vitima das opções e tinha baixado muitas rotações. As transições eram mais lentas, a agressividade esfumou-se e a qualidade individual também. Mas quem tinha visto jogar os homens de AVB reconhecia o mesmo padrão com VP da mesma forma que entre as diferenças que existem entre Guardiola, Vilanova e Martino não impedem que o Barcelona continua a ser o Barcelona.
Agora podem dizer o mesmo?
Não!
Desde Agosto que a matriz dos últimos três anos foi abandonada por completo.
É o direito legitimo de qualquer treinador escolhido pela direcção de impor o seu estilo e modelo de jogo. Se o faz, imagino que seja de acordo com quem o contrata que é quem responde aos sócios e accionistas. Eles são conscientes do que custou criar essa matriz, do que significa manter um modelo ao largo dos anos a nível de estabilidade futebolista e de gestão de balneário. Se aprovam a mudança - não só do desenho táctico mas dos princípios básicos do jogo - saberão porque o fazem. Mas agora na Europa ninguém se lembraria de associar este FC Porto ao Barcelona. Como muito poderiam fazer uma comparação que é, para muitos portistas, odiosa: com o Real Madrid.
A equipa da capital espanhola é reconhecida mundialmente por não ter modelo de jogo. Vive para onde o vento sopra. A cada presidente e treinador que chega tudo muda. O importante são os jogadores, quanto mais mediáticos e caros, melhor. Bale custa 100 milhões, logo vale mais que Ozil que só custou 15, pensam muitos adeptos e dirigentes do clube espanhol. Com o esquema de jogo é o mesmo. Não há um modelo desde o fim da Quinta del Buitre, nos anos 80. A táctica muda, os princípios mudam, os jogadores mudam, os treinadores mudam. As vitórias só aparecem porque o valor individual e o dinheiro metido no plantel assim o ditam. De futebol, muito pouco.
Actualmente em Portugal passamos pelo mesmo cenário. O FC Porto ganha muitos jogos porque é o FC Porto. Não porque jogue bem, não porque tenha um padrão de jogo, não porque saiba o que faz. Ganha-o simplesmente porque Jackson é o melhor avançado da liga, porque Lucho coxo é melhor que a maioria dos médios do campeonato. Porque Mangala-Otamendi ainda é uma dupla que supera qualquer outra. Porque os frangos ocasionais de Helton não empalidecem comparados com os de Artur, Eduardo e Patricio. Porque ganhar no Dragão é impossível e defender com dez homens dentro da área nos jogos fora nem sempre resulta. Ganhamos por inércia da mesma forma que o Real Madrid ganha muitos dos seus jogos. Não pela qualidade do projecto que PF tenha a apresentar. E isso é, sobretudo, o mais preocupante.
Eu quero que o FC Porto tenha um modelo que seja válido hoje, com PF, e amanhã com o treinador X.
Para isso é preciso duas coisas.
Ter a direcção decidida a apostar fielmente nesse modelo de jogo (em vez de se preocupar tanto com modelos de negócio, que não é o mesmo) e contratar sempre treinadores e jogadores para cumprir esse preceito colectivo como tem feito o Barcelona (noutra escala, obviamente) ou então apostar como há muito defendo num nome sério para o banco. Num nome consagrado, com uma cultura futebolística suficientemente alta para manejar distintas situações e saber o que está a fazer, sem parecer um puto de olhar perdido. Falou-se muito em Pellegrini, um treinador que cumpre esse preceito, mas entendo que entre o Dragão e o City of Manchester, o dinheiro tenha falado mais alto. Mas o chileno não é o único dentro desse grupo de treinadores que sabem muito de futebol e colocam sempre as suas equipas a jogar muito bem e de forma coerente. A SAD prefere-os inexperientes, jovens e ambiciosos e está no seu direito. Acertou duas vezes. Mas se o faz, pelo menos que tenha o cuidado de escolher nomes que se enquadrem numa ideia colectiva que faça parte do nosso próprio ADN. De alguém que saiba onde vai entrar, que rotinas há que saber manter, que processos há que assimilar e que estruturas são fundamentais para manter o equilíbrio.
Em quatro meses a estabilidade defensiva de três anos desapareceu.
A organização na construção de jogo também. A equipa é mais vertical mas menos coerente. Os jogadores estão perdidos porque os que já cá estavam tinham rotinas bem treinadas que agora não podem por em prática e os novos ainda não entenderam o que se lhes pede.
Provavelmente todos eles gostariam de jogar como no ano de AVB, e os adeptos também não se importariam de rever esses jogos no presente. Mas para chegar aí não basta apenas ter opções individuais (e este plantel tem mais opções que o dos últimos dois anos). É fundamental ter alguém que siga um modelo, que seja fiel ao nosso ADN.
Em Madrid, Carlo Ancelotti - um treinador de títulos, onde é que já ouvi isso - não sabe a que joga. Nem ele nem ninguém. E a sua equipa é penosa. Em Barcelona, chegado do outro lado do Atlântico e sem experiência europeia, Tata Martino herdou uma ideia que apenas tem de gerir e controlar. Ás vezes é mais dificil não mexer do que inventar. PF tem, como Ancelotti, procurado inventar. Sem sucesso. Tem sido salvo pelos jogadores e pela inércia mas isso não durará para sempre quando for a doer. Talvez devesse ter sido mais humilde, como Martino, e procurar ver o bom naquilo que o precede antes de procurar melhorar a máquina já montada e oleada. Tem tempo para isso? Tem. Mas precisa de saber dar um passo atrás. Devolver aos jogadores a confiança nos processos de jogo perdidos (e isto vai muito mais longe do que só recuar Fernando e voltar ao 4-3-3) e a partir de aí procurar introduzir novas variantes que nos façam mais imprevisíveis e, portanto, mais fortes. Caso contrário até podemos ser Tetracampeões, vencer a Taça de Portugal e a Taça da Liga. Muitos adeptos irão para as ruas celebrar. Mas teríamos ganho por motivos que, mais tarde ou mais cedo, vão-se revelar mais um problema do que uma solução!