Ser Porto.
Há uns anos começou a correr por aí a expressão "Ser Porto", como se os cimentos gastos do velho estádio das Antas recordassem outro grito de guerra entretanto perdido. Foi a época do marketing, do 1893 na camisola - não fosse alguém duvidar do duvidável - e da externalização da comunicação do clube com as suas forças vivas a labaredas ou diários mitológicos que vendem independência mas seleccionam melhor as noticias com lápiz azul(e branco) que outros. Mas o importante era repetir o mantra, "Ser Porto". Todos aqueles que tinham chegado até ali, muitos nascidos quando "Ser Porto" significava sofrer ano sim e ano também, tinham de reaprender a cartilha, não fosse alguém desconfiar de que "Ser Porto" não era lá com eles e como se o "Bibó Porto carago" que durante décadas se ouviu até no silêncio da neblina que todas as manhãs se adentra pela Douro fosse impossível de se vender nos emails enviados às empresas a quem se pede dinheiro para pagar os croisants que antes se compravam no Velasquez fiados. Mas por muito que vendam o grito, por muito que criem a linguagem moderna do que é, na prática, "ser Porto", há quanto tempo é que aqueles que a proclamam, ás vezes até em silêncio - pasme-se, há directores desportivos do clube que falam calados ou falam lá para fora, não para os seus, porque ficam melhor na fotografia - são eles Porto?
Foram, sem dúvida, foram Porto.
Foram provavelmente mais do que muitos ainda que o FC Porto, o que não ganhava todos os anos e sofria tantas vezes o injusto e criminal tratamento votado pelo centralismo, também estivesse cheio de homens grandes e que eram, sem dúvida, também eles, Porto. Mas ninguém discute, ninguém disputa que houve uma lufada de ar fresco quando quem hoje se esconde em muros de silêncio deu um pontapé na muralha para gritar, sem medo, que ser Porto era algo maior do que um motivo de orgulho, era uma forma de ser. Esses gritos, que se ouviam tão longe que minaram por dentro o sistema que nos afogava ano atrás ano, são a base de tudo e não há como esquecer essa voz que, quando falava, o mundo tremia. Durante três longas, inesquecíveis e intermináveis décadas - pelo menos na nossa memória - reescreveu-se o adn de um clube que deixou de ter medo de gritar que era ele próprio, um clube de portistas para portistas e disposto a tudo para não se deixar prejudicar por quem não suportava o êxito desses portistas. Forjou-se aí a cultura vigente, ás vezes substituindo coisas antigas, outras vezes recuperando-as. Nasceram dragões das nuvens, recuperou-se a "mistica" do balneário depois de anos de prima-donas que jantavam com presidentes para despedir treinadores e recuperaram-se figuras históricas, não para lamber feridas mas sim para lançar o futuro. A cada eleição, a cada aclamação, entendia-se aquele "ser Porto" porque não eram palavras vãs. O discurso tinha eco real no quotidiano e não eram apenas os titulos - nacionais e internacionais. Era o orgulho próprio, a identidade, a sensação de pertencer a algo grande, genuino e que não deixava de ser portuense, nortenho, apesar de haver espaço para todos. Aquele "ser Porto" era-o na teoria e na prática - vamos assumir já que ninguém é perfeito e que houve, como sempre, altos e baixos - e quem conduzia o navio era, sem dúvida, Porto. Ainda o é?
O novo processo eleitoral está prestes a chegar à sua conclusão antes de ter sido sequer iniciado, consequência lógica e inevitável de quem se sabe eterno e imortal - ele, os outros, todos - e não está para incomodar-se com burocracias. Mas se há rostos similares, alguns gastos pelos anos, pela vida e pelos excessos de tudo, o discurso hoje já não é o mesmo. É vazio, é oco, é um loop gasto, perdem-se já palavras, entendimentos e ilusões a cada vez que o "ser Porto" se corrompe, dia após dia. Tudo aquilo que se defendeu em 1977, que se reforçou em 1982 e que foi, ano atrás ano, dando força aos nossos despertares, é hoje memória presente mas vã, como aqueles que sentem nostalgia por algo que sabem que não vai voltar olhando para aqueles que lhes dizem, quase rindo-se de eles, de que esse algo nunca se foi. Mas foi, ó se foi. Em 1982 o FC Porto fez-se grande porque decidiu colocar o seu destino nas mãos de quem era Porto, soube ser Porto e soube fazer-nos a todos um pouco mais Porto. Mas em 1982 - e nos anos seguintes - o que o Porto não queria, o que não era ser Porto, o que nos fazia a todos um pouco menos Porto era precisamente aquilo que hoje aqueles que lutaram contra essa realidade colocam em prática com assustadora frequência. Procurei, juro que procurei, nos panfletos eleitorais, nas hemerotecas, no discurso e nas aclamações e vivas daqueles anos sinais do que é o Porto de hoje e não encontro paralelos, não encontro concordância. Em nenhum lugar encontrei sinais do que podiamos encontrar em relatórios de conta como os que vamos abrindo, trimestralmente, com resignação, as alvisseras e vivas a um "ser Porto" que inclui entre tantos outros pecados inconfessáveis:
- pagar comissões a familiares por negócios
- contratar familiares e familiares de amigos para a estrutura do clube
- permitir que familiares exerçam de porta-voz do clube, defenestrando simbolos reais de escudo no peito, ou coloquem em risco o próprio futuro do clube tendo acesso a informações mais tardes debitadas por meia dúzia de tostões e muito rancor
- estar mais preocupado em distribuir riqueza pela corte de amigos do que no futuro do clube
- apostar conscientemente na desvalorização desportiva em prole da dependência financeira alheia, entre bancos e fundos, o que ás vezes é o mesmo
- alhear-se do que é ser simbolo de uma cidade, de uma região, não como elemento exclusivo - todos podem ser Porto em qualquer canto do Mundo - mas como vector de dinamismo deixando essa luta abandonada ou a outros sem a mesma força que tem a voz do dragão
- abdicar de uma excelente equipa de scouting, forjada com anos de trabalho intenso de pessoas que, muitas vezes desde o biberão sim "são Porto", para externalizar esses serviços
- transformar a formação, a base de mais de década e meia de êxitos, num pro-forma, num negócio onde até percentagens de passes são oferecidos, como eclairs, em processos de renovação quando, quem assina, já tem o contrato escrito a azul e branco no coração
- transferir a seu belo prazer as quotas dos sócios, negligenciando as modalidades que sempre fizeram parte do ADN do clube e que também são, para muitos, Porto.
- transferir a seu belo prazer a posse do estádio, correndo o risco de deixar, num futuro em que a SAD possa não ser da instituição de um modo maioritário -e ninguém pode jurar que isso não passará - o FC Porto no olho da sua própria rua.
- calar, consentir e silenciar todos os "roubos de Igreja" que prejudicam, dia sim, dia também o clube quando o êxito do clube se construiu em gritar, não consentir e denunciar cada golpe que nos tentaram dar por cima e por debaixo da mesa
- permitir que os velhos poderes, os que se contestavam e que columpiados com o poder, esse que ia entrar na Assembleia com uma cabeça na bandeja, controlem como um polvo as instituições que têm poder de decisão sobre a vida desportiva onde compete o escudo e a camisola
- ser incapaz de competir com equipas menores, em orçamento e pedigree, sem um assomo de vergonha e auto-critica salvo por escorrer a culpa para os que já não estão, assobiando para o lado ao mesmo tempo que se engorda a maquinaria orçamentada até ao risco da implosão.
Não, não adianta procurar porque não vão encontrar nada que proponha como politica desportiva nada disto porque, "ser Porto", nessa altura de positivismo e arrojo, era outra coisa ainda que alguns sejam os mesmos, e muito do que hoje se faz era então combatido, valentemente, sem papas na lingua, sem medos e sem meias palavras.
Aquilo que corrompia o clube até as entranhas - o medo crónico, a subserviência, a desvalorização desportiva, o desrespeito pelo associado - aliado aquilo que nem nos piores anos se vivia como o nepotismo, as negociatas com entidades que existem debaixo de um imenso ponto de interrogação - está hoje mais presente do que então, a tal ponto que parece, pura e simplesmente, que voltamos a viajar no tempo. Nada pode apagar 30 anos de titulos e memórias que não se derretem no tempo mas também nada logra, realmente, explicar, tanto interesse em voltar atrás no tempo. Parece, de algum modo, que alguém se arrependeu de quem foi, do que significou e do que logrou e quer voltar ao inicio, recuperar a juventude perdida tentando voltar à casa de partida do jogo para reiniciar o processo. Só que todos sabemos que o tempo não volta para trás por muitos que alguns queiram e devolver o clube à mais miserável das condições não dá direito a jogar o jogo com uma nova vida guardada. Ou talvez aqueles que ajudaram a definir, com todo o mérito, aquele "ser Porto" se tenham esquecido do que foram.
Será, então, que esse "ser Porto" que foi também o de todos aqueles que vieram de trás e suportaram não a glória mas a dor, o sofrimento e a tristeza de perder sem poder lutar, existe ainda naquele espaço fechado onde se tomam as decisões que padecemos todos? No fundo, em todo este processo, só há uma pergunta que é ainda válida tendo em conta tudo o que sabemos, tudo o que desenterramos, tudo o que vivemos e tudo o que debates. Será, de verdade, que eles ainda são "Porto"?