sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O caso Calabote (VII)

I. A trajectória da bola e as decisões da FPF
II. A pouco inocente nomeação de Calabote
III. Os estágios das selecções em... Lisboa
IV. Treinador-adjunto do SLB no banco do Torreense
V. Deus deu o campeonato à melhor equipa
VI. Um Gama avermelhado na baliza da CUF

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VII. Treinador do FC Porto comprometido com o SLB



No dia 1 de Novembro de 1958, com a época 1958/59 já a decorrer, chegou ao aeroporto da Portela um treinador que haveria de marcar o futebol português – Béla Guttmann.

O “mago”, como ficou conhecido, nasceu a 13 de Março de 1900, em Budapeste, e antes de chegar a Portugal para substituir o treinador do FC Porto – Otto Bumbel – já fora campeão na Hungria, Roménia e Brasil.

Guttmann era um treinador caro e, conforme conta A Bola, na 'Glória e Vida de Três Gigantes', «exigia que lhe pagassem como não se pagava a mais ninguém no mundo do futebol. (...) Para o F. C. Porto veio ganhar 300 contos por ano, exigindo também 100 contos de prémio pela conquista do Campeonato.»

Dispondo de grandes jogadores e impondo uma disciplina de ferro (na linha do que Yustrich tinha feito três anos antes), Guttmann rapidamente transformou o FC Porto na melhor equipa do futebol português e ao fim de algumas jornadas já tinha recuperado o atraso de cinco pontos com que partiu em relação ao Benfica.

Satisfeitos com o seu trabalho, os dirigentes do FC Porto abordaram-no várias vezes para renovar o contrato, ao que Guttmann retorquia dizendo que havia tempo. Esta posição de Guttmann era estranha e pouco habitual mas, veio-se a saber depois, havia fortes razões ($$$) por trás.

De facto, o trabalho de Guttmann não era só apreciado nas Antas. Na capital, os dirigentes do todo poderoso SLB não olhavam a meios e, apesar do bom relacionamento que havia entre os presidentes dos dois clubes – Dr. Paulo Pombo e Eng. Maurício Vieira de Brito – não se coibiram de secretamente, com o campeonato ainda a decorrer, contactarem o treinador húngaro naturalizado austríaco oferecendo-lhe um contrato significativamente superior ao que tinha no Porto para ir treinar as “águias” (de rapina!) na época seguinte.

Pedroto e Bela Guttmann


«Béla Guttmann, que pela vitória no Campeonato recebeu de um dirigente portista um emblema do F. C. Porto de... diamantes e por essa altura já sabia que seria treinador do Benfica na época seguinte»
in 'Glória e Vida de Três Gigantes', A BOLA

«ao fazer a festa, sem que alguém sequer desconfiasse disso, Béla já tinha escolhido outro caminho, trocando o F. C. Porto pelo Benfica, num processo pouco leal»
in '100 figuras do futebol português', A BOLA

O aliciamento feito por Vieira de Brito ao treinador do clube com quem o SLB estava a disputar o título taco-a-taco, é mais um dos episódios fora das quatro linhas em que essa época foi fértil e mostra bem do que os dirigentes encarnados eram capazes.
Os benfiquistas alegam que isso não impediu o FC Porto de se sagrar campeão. Pois não, até porque Guttmann gostava muito de dinheiro e o contrato com os azuis-e-brancos previa um prémio de 100 contos pela conquista do campeonato...

«[Otto Glória] Ficou até 1958/59, estruturando o plantel que se sagraria depois Bicampeão Europeu. Não completou a temporada, pois havendo rumores da contratação de Bela Guttmann, decidiu sair do Benfica no ultimo dia de Junho de 1959, deixando a nossa equipa apurada para os quartos-de-final da Taça de Portugal.»
in ‘Há 92 anos nasceu Otto Glória’, O Benfica, 09/01/2009

Os rumores do acordo entre o SLB e Guttmann eram cada vez mais fortes e insistentes. Sabendo disso, no dia 13 de Junho de 1959, o ainda treinador do Benfica – Otto Glória – fechou contrato com o Belenenses para a época seguinte, sujeitando-se a um salário de 10 contos por mês (menos que aquilo que o Benfica lhe pagara cinco anos antes, na sua época de estreia em Portugal).

Apenas cinco dias depois, no dia 18 de Junho de 1959, ‘A Bola’ publicou uma noticia “sensacional”, dando como quase certa a transferência de Béla Guttmann do FC Porto para o Benfica!
Já na altura havia um canal de comunicação bem oleado entre a Travessa da Queimada e o estádio da Luz...

No dia 2 de Julho de 1959, ‘A Bola’ confirmou a saída de Béla Guttmann do FC Porto e a sua contratação pelo Benfica. Segundo a “bíblia dos benfiquistas”, o divórcio foi amigável porque “ambas as partes quiseram poupar dinheiro”.
Conforme se constata, a manipulação jornalística vem de há muito anos...

A final da Taça de Portugal, disputada em 19 de Julho de 1959, voltaria a colocar frente a frente os dois clubes de Guttmann. O que ainda lhe pagava o ordenado e aquele que já o tinha contratado para a época seguinte.
Do outro lado, quem se sentou no banco para orientar os encarnados nessa final foi Valdivielso (lembram-se dele?).

O FC Porto de Guttmann era, reconhecidamente, a melhor equipa do futebol português (rever, por exemplo, as declarações dos jogadores do Benfica B... perdão, Torreense), mas nesse jogo com o Benfica a equipa apareceu estranhamente abúlica e perdeu 0-1.
Ninguém poderá provar que Guttmann já estava a pensar mais no Benfica do que no FC Porto (ou, como diria Luís Filipe Vieira, a fazer as coisas por outro lado...), mas há quem lembre que, ao contrário do campeonato, o seu contrato com os “dragões” não previa um prémio chorudo pela conquista da Taça de Portugal...

Antes de sair do FC Porto, o novo treinador do SLB ainda teve tempo de fazer duas “maldades”, dispensando dois grandes jogadores:

• José Augusto, que veio do Barreiro treinar às Antas e que foi aconselhado por Guttmann a fazê-lo… na Luz (este facto pode ser atestado num artigo do jornalista Carlos Pinhão, em ‘A Bola’, de 08/09/1990);

• Osvaldo Silva (colocado na lista das transferências), o qual iria para o Leixões e, posteriormente, para o Sporting.

Quase clandestinamente, sem dizer nada aos directores azuis e brancos, Guttmann lá rumou a Lisboa, onde já tinha casa alugada. Deixou uma carta onde explicava que era por causa do clima frio do Porto e do nevoeiro, que lhe tinha provocado crónicas dores nas costas. Necessitava, por isso, do sol do sul...

Haveria de voltar ao Porto 14 anos depois, em 1973, devido à memória curta de um presidente do FC Porto - Américo de Sá -, que o convidou para treinar novamente os “dragões”. Apesar de já ser um septuagenário, nessa altura o “clima frio do Porto” não foi um óbice...

Guttmann foi para o SLB ganhar 400 contos líquidos por ano e prémios de 150 contos pela conquista do Campeonato, 50 pela Taça de Portugal e 300 pela Taça dos Campeões.
Para se ter uma ideia da dimensão destes montantes, a vitória sobre o Barcelona, em Berna (1960/61), rendeu a Guttmann 10 vezes mais que a maquia que coube a cada um dos jogadores do SLB.

O desvio de Guttmann (como lhe chamou Carlos Pinhão em ‘A Bola’), foi crucial para a construção do Benfica europeu, equipa que dominou o futebol português durante a década de 60. Recorde-se que os dois únicos títulos europeus da história do SLB foram ganhos com Guttmann como treinador (há quase 50 anos...) e no primeiro ainda nem sequer havia Eusébio.

Em 1964, Guttmann veio passar o Natal a Lisboa, tendo nessa altura afirmado:
“(...) fui eu que cozinhei o Benfica europeu, de que, depois, vieram outros comer. Ganhei o campeonato europeu com jogadores como Neto, Saraiva, Serra, Artur, Mário João... E agora que squadra tem o Benfica? Só Serafim ficou mais caro que todas as aquisições feitas no meu tempo: o Eusébio, o Torres, o Germano, o José Augusto. E não tem jogado”.

(continua: Jornalistas de 'A Bola' lamentam título ganho pelo FC Porto)

Fontes:
[1] '100 figuras do futebol português', A BOLA, 1996
[2] 'Glória e Vida de Três Gigantes', A BOLA, 1995
[3] 'História dos 50 anos do desporto português', A BOLA, 1994
[4] 'Carta de Adriano Lima a Rui Moreira', dragaodoente.blogspot.com, 2008


Fotos:
'100 figuras do futebol português'
'Glórias do Passado'
'Planeta do Futebol'

4 comentários:

Zé Luís disse...

José Correia, se os episódios à volta do título de há 50 anos e o famigerado "caso Calabote" já haviam sido descitos pelo "CSI: Calabote Sob Investigação", no Pobo do Norte, estes novos pormenores, além de outros envolventes à última jornada de 1958-59, são deliciosos e comprovam como era o cavalheirismo daquele tempo, a reputação impoluta dos homens do Desporto de então, a pujança dos homens do regime num país em que Lisboa era capital e o resto paisagem e a importância relativa do futebol num país pobre, atrasado, inculto mas preso aos "3 f", na fase de vacas magras do pós-Guerra.

Só sabia que Guttman tinha saído do FC Porto campeão, nem imginava quanto ganharia, para o Benfica, que por eles foi campeão europeu e depois vaticinou que não mais ganhariam a Taça dos Campeões da UEFA.

Obrigado pelo trabalho esforçado, dedicado e esclarecedor.

Mefistófeles disse...

É, de facto, um post interessante.

O Zé Luís já disse tudo.

Saudações Portistas

Paulo Marques disse...

Apanho cada vez mais supresas ao ler estes artigos...

Muito obrigado.

Jotap disse...

É a 1ª vez que vos visito aproveito e gostei.Já agora, vou ao assunto
cada vez me rio mais da verdade des-
portiva . Vou aparecer mais vezes.

Saudações VIVA O F:C.P.