I. A trajectória da bola e as decisões da FPFII. A pouco inocente nomeação de CalaboteIII. Os estágios das selecções em... LisboaIV. Treinador-adjunto do SLB no banco do TorreenseV. Deus deu o campeonato à melhor equipaVI. Um Gama avermelhado na baliza da CUF----------
VII. Treinador do FC Porto comprometido com o SLB
No dia 1 de Novembro de 1958, com a época 1958/59 já a decorrer, chegou ao aeroporto da Portela um treinador que haveria de marcar o futebol português – Béla Guttmann.
O “mago”, como ficou conhecido, nasceu a 13 de Março de 1900, em Budapeste, e antes de chegar a Portugal para substituir o treinador do FC Porto – Otto Bumbel – já fora campeão na Hungria, Roménia e Brasil.
Guttmann era um treinador caro e, conforme conta A Bola, na 'Glória e Vida de Três Gigantes', «exigia que lhe pagassem como não se pagava a mais ninguém no mundo do futebol. (...) Para o F. C. Porto veio ganhar 300 contos por ano, exigindo também 100 contos de prémio pela conquista do Campeonato.»
Dispondo de grandes jogadores e impondo uma disciplina de ferro (na linha do que Yustrich tinha feito três anos antes), Guttmann rapidamente transformou o FC Porto na melhor equipa do futebol português e ao fim de algumas jornadas já tinha recuperado o atraso de cinco pontos com que partiu em relação ao Benfica.
Satisfeitos com o seu trabalho, os dirigentes do FC Porto abordaram-no várias vezes para renovar o contrato, ao que Guttmann retorquia dizendo que havia tempo. Esta posição de Guttmann era estranha e pouco habitual mas, veio-se a saber depois, havia fortes razões ($$$) por trás.
De facto, o trabalho de Guttmann não era só apreciado nas Antas. Na capital, os dirigentes do todo poderoso SLB não olhavam a meios e, apesar do bom relacionamento que havia entre os presidentes dos dois clubes – Dr. Paulo Pombo e Eng. Maurício Vieira de Brito – não se coibiram de secretamente, com o campeonato ainda a decorrer, contactarem o treinador húngaro naturalizado austríaco oferecendo-lhe um contrato significativamente superior ao que tinha no Porto para ir treinar as “águias” (de rapina!) na época seguinte.
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Pedroto e Bela Guttmann
«Béla Guttmann, que pela vitória no Campeonato recebeu de um dirigente portista um emblema do F. C. Porto de... diamantes e
por essa altura já sabia que seria treinador do Benfica na época seguinte»
in 'Glória e Vida de Três Gigantes', A BOLA
«
ao fazer a festa, sem que alguém sequer desconfiasse disso, Béla já tinha escolhido outro caminho, trocando o F. C. Porto pelo Benfica, num processo pouco leal»
in '100 figuras do futebol português', A BOLA
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O aliciamento feito por Vieira de Brito ao treinador do clube com quem o SLB estava a disputar o título taco-a-taco, é mais um dos episódios fora das quatro linhas em que essa época foi fértil e mostra bem do que os dirigentes encarnados eram capazes.
Os benfiquistas alegam que isso não impediu o FC Porto de se sagrar campeão. Pois não, até porque Guttmann gostava muito de dinheiro e o contrato com os azuis-e-brancos previa um prémio de 100 contos pela conquista do campeonato...
«[Otto Glória] Ficou até 1958/59, estruturando o plantel que se sagraria depois Bicampeão Europeu. Não completou a temporada, pois havendo rumores da contratação de Bela Guttmann, decidiu sair do Benfica no ultimo dia de Junho de 1959, deixando a nossa equipa apurada para os quartos-de-final da Taça de Portugal.»
in ‘Há 92 anos nasceu Otto Glória’, O Benfica, 09/01/2009
Os rumores do acordo entre o SLB e Guttmann eram cada vez mais fortes e insistentes. Sabendo disso, no dia 13 de Junho de 1959, o ainda treinador do Benfica – Otto Glória – fechou contrato com o Belenenses para a época seguinte, sujeitando-se a um salário de 10 contos por mês (menos que aquilo que o Benfica lhe pagara cinco anos antes, na sua época de estreia em Portugal).
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Apenas cinco dias depois, no dia 18 de Junho de 1959, ‘A Bola’ publicou uma noticia “sensacional”, dando como quase certa a transferência de Béla Guttmann do FC Porto para o Benfica!
Já na altura havia um canal de comunicação bem oleado entre a Travessa da Queimada e o estádio da Luz...
No dia 2 de Julho de 1959, ‘A Bola’ confirmou a saída de Béla Guttmann do FC Porto e a sua contratação pelo Benfica. Segundo a “bíblia dos benfiquistas”, o divórcio foi amigável porque “ambas as partes quiseram poupar dinheiro”.
Conforme se constata, a manipulação jornalística vem de há muito anos...
A final da Taça de Portugal, disputada em 19 de Julho de 1959, voltaria a colocar frente a frente os dois clubes de Guttmann. O que ainda lhe pagava o ordenado e aquele que já o tinha contratado para a época seguinte.
Do outro lado, quem se sentou no banco para orientar os encarnados nessa final foi Valdivielso (lembram-se dele?).
O FC Porto de Guttmann era, reconhecidamente, a melhor equipa do futebol português (rever, por exemplo, as declarações dos jogadores do Benfica B... perdão, Torreense), mas nesse jogo com o Benfica a equipa apareceu estranhamente abúlica e perdeu 0-1.
Ninguém poderá provar que Guttmann já estava a pensar mais no Benfica do que no FC Porto (ou, como diria Luís Filipe Vieira, a fazer as coisas por outro lado...), mas há quem lembre que, ao contrário do campeonato, o seu contrato com os “dragões” não previa um prémio chorudo pela conquista da Taça de Portugal...
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Antes de sair do FC Porto, o novo treinador do SLB ainda teve tempo de fazer duas “maldades”, dispensando dois grandes jogadores:
• José Augusto, que veio do Barreiro treinar às Antas e que foi aconselhado por Guttmann a fazê-lo… na Luz (este facto pode ser atestado num artigo do jornalista Carlos Pinhão, em ‘A Bola’, de 08/09/1990);
• Osvaldo Silva (colocado na lista das transferências), o qual iria para o Leixões e, posteriormente, para o Sporting.
Quase clandestinamente, sem dizer nada aos directores azuis e brancos, Guttmann lá rumou a Lisboa, onde já tinha casa alugada. Deixou uma carta onde explicava que era por causa do clima frio do Porto e do nevoeiro, que lhe tinha provocado crónicas dores nas costas. Necessitava, por isso, do sol do sul...
Haveria de voltar ao Porto 14 anos depois, em 1973, devido à memória curta de um presidente do FC Porto - Américo de Sá -, que o convidou para treinar novamente os “dragões”. Apesar de já ser um septuagenário, nessa altura o “clima frio do Porto” não foi um óbice...
Guttmann foi para o SLB ganhar 400 contos líquidos por ano e prémios de 150 contos pela conquista do Campeonato, 50 pela Taça de Portugal e 300 pela Taça dos Campeões.
Para se ter uma ideia da dimensão destes montantes, a vitória sobre o Barcelona, em Berna (1960/61), rendeu a Guttmann 10 vezes mais que a maquia que coube a cada um dos jogadores do SLB.
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O desvio de Guttmann (como lhe chamou Carlos Pinhão em ‘A Bola’), foi crucial para a construção do Benfica europeu, equipa que dominou o futebol português durante a década de 60. Recorde-se que os dois únicos títulos europeus da história do SLB foram ganhos com Guttmann como treinador (há quase 50 anos...) e no primeiro ainda nem sequer havia Eusébio.
Em 1964, Guttmann veio passar o Natal a Lisboa, tendo nessa altura afirmado:
“(...)
fui eu que cozinhei o Benfica europeu, de que, depois, vieram outros comer. Ganhei o campeonato europeu com jogadores como Neto, Saraiva, Serra, Artur, Mário João... E agora que squadra tem o Benfica? Só Serafim ficou mais caro que todas as aquisições feitas no meu tempo: o Eusébio, o Torres, o Germano, o José Augusto. E não tem jogado”.
(continua: Jornalistas de 'A Bola' lamentam título ganho pelo FC Porto)
Fontes:
[1] '100 figuras do futebol português', A BOLA, 1996
[2] 'Glória e Vida de Três Gigantes', A BOLA, 1995
[3] 'História dos 50 anos do desporto português', A BOLA, 1994
[4] 'Carta de Adriano Lima a Rui Moreira', dragaodoente.blogspot.com, 2008Fotos:
'100 figuras do futebol português'
'Glórias do Passado'
'Planeta do Futebol'