quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Poeta morreu



Na aldeia em que vivo da freguesia de Paranhos no Porto, ainda mantemos alguns hábitos de convívio que se foram perdendo: pela desertificação de algumas zonas da cidade, pela terrível concorrência da TV, das redes sociais e porque caiu em desuso. Mantemos um pequeno núcleo que costuma juntar-se para discutir os temas que mais nos tocam, o que fazemos mensalmente, numa tertúlia para discutir temas políticos, culturais, económicos e sociais e, todas as semanas, para tratar, analisar e comentar o desporto, em geral. A ideia era boa, mas desfez-se porque o Zé da Frutaria (portista de sempre) acertou um murro no Silva, benfiquista regressado das Américas, por este ter dito, de forma indignada, que as escutas provaram bem como o FCP chegou e consegue ser campeão. Depois disso, nada mais foi como dantes: o pessoal do SLB desertou, criou um núcleo próprio e os portistas não lhe ficaram atrás.

Consumado o distanciamento, procurámos – os mais “tolerantes” – encontrar pontes de entendimento através da tertúlia. Tem sido complicado, e a vida comunitária, até aí multitribal, rica de criatividade, de má língua brejeira, de acontecimentos improváveis e por vezes admiráveis, perdeu parte da sua ingenuidade e autenticidade. Não está ferida de morte, mas sofre de doença grave. Como uma desgraça nunca vem só, a Svetlana (continua boa como o milho) anunciou, no dia em que comemorámos a vitória no campeonato, que iria regressar em definitivo ao Brasil. Estava cheia da troika e de quem a pariu, confessou tristemente. Nesse ponto, portistas e benfiquistas estavam de acordo: uma perda irreparável. Nada mais seria como dantes.


Do grupo, sobressaía o “Poeta” pela sua calma e distanciamento. Estava junto de nós, mas nunca estava perto. Vivia num mundo à parte, sempre alheado e apressado. Residia numa casa da zona, que partilhava com outros supostos intelectuais, perfilhando um estilo de vida vagamente marginal. Os vizinhos não gostavam deles e achavam que eram toxicodependentes perigosos. Nunca notei nada, a não ser a simplicidade extravagante na forma como vestiam. Diferentes eram, sem sombra de dúvida. Era portista, porque sendo do Porto, considerava que não poderia ser de outro clube. Mantinha uma simpatia pelo Salgueiros, mas amava o FCP, desde o tempo da resistência. Não ia ao Dragão, salvo na inauguração que não perdeu, nem assistia a todos os jogos pela TV. A ligação ao clube era, essencialmente, cultural e platónica: não ficava exaltado quando perdia, nem esfusiante quando ganhava. Não pagava quotas, nem exigia vitórias. Vivia serenamente a condição de portista, que em nenhuma circunstância negava. A bandeira do FCP, bastante desgastada pelo rigor do tempo, mantinha um milagroso equilíbrio, presa na janela coberta de caruncho. Era cuidadosamente enrolada, quando a chuva e o vento eram mais intensos.

Fisicamente, tinha muitos semelhanças com Monsieur Hulot, numa versão mais magra, sem chapéu, pois não dispensava exibir o seu rabo de cavalo. Vestia quase sempre a sua gabardine, bem puída pelo tempo, umas calças que deixavam ver as meias, acinzentadas de preferência, e de baixo do braço fazia-se acompanhar dos rascunhos dos poemas que tem em carteira. Fumava cachimbo: supostamente usava tabaco.

No último encontro do nosso núcleo portista, realizado antes do FCP com o Marítimo, falou-se menos do FCP e demais de VP e do perfil do próximo treinador. As coisas, a certa altura, azedaram e o Poeta falou. Fizemos silêncio porque o homem raramente botava faladura. Leu um poema. O título: amor não correspondido. Era chato e comprido. O silêncio tornou-se mais intenso: não sabíamos que dizer. O Poeta, melancolicamente, retomou a palavra, perguntando: “Porquê tanto azedume? Porque é que o futebol, tem de ser tão chato?”. Levantou-se e saiu. As perguntas não esperaram pelas respostas e não reconhecemos qualquer conexão com o poema que ouvimos, pacientemente. Mais tarde, à noite no café, pedimos, por uma questão de simpatia, para nos dar uma cópia dos seus escritos, ainda que fossem rascunhos. Respondeu-nos: “Fica para quando tiver publicado o livro de poemas, que está pronto para sair”. Pouco depois, retirou-se apressadamente, como de costume.

O Poeta morreu no 1 de Maio, quando atravessava a rua em passo de corrida, para comemorar o dia do trabalhador. Era anarca militante. Provavelmente, absorto num qualquer poema que lhe enchia o pensamento, não deu conta do carro que o atropelou, sem culpa, nem piedade. Ao funeral estiveram os que habitavam o mesmo espaço de uma casa muito degradada, mais alguns de nós e dos outros. Houve discurso: não lhe foram poupadas virtudes e o elogio da excelência da sua poesia. Ficamos mais pobres, mas não pela poesia perdida ou pelo livro que nunca leremos. Insisto: tinha uma paixão pelo FCP, sem ser um entusiasta pelo futebol. Acompanhava o ciclismo que adorava, embora nunca tivesse andado de bicicleta. Reconhecido pela sua extravagância, era diferente, enigmático e humano. Creio que era um homem bom: acho que não estou influenciado pelo facto de ter morrido. Paz à sua alma.

3 comentários:

Nuno Leal disse...

Fantástico texto, pena a razão dele de ser. Os meus sentimentos.

joaodolobo disse...

Muito bom post. Cumprimentos.

zingaro disse...

Muito bom post. é sempre louvável homenagear portistas anónimos e com uma forma de viver alternativa.

Descansa em paz poeta.


Miguel Viso